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A QUASE INCONVENIÊNCIA DOS INCENTIVOS FISCAIS

A QUASE INCONVENIÊNCIA DOS INCENTIVOS FISCAIS

Antonio Roque Citadini*

Em diversas oportunidades, por meio de artigos publicados na imprensa, tenho insistido sobre a necessidade da busca, pelos administradores, do equilíbrio orçamentário, com a equalização da Receita e da Despesa, como forma de promover a gestão dos negócios públicos dentro dos princípios da legalidade, da responsabilidade, da equidade e da competência administrativa, fundamentos para a promoção da justiça social nos Estados democráticos de Direito.

No âmbito da jurisdição do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, tem sido grande o esforço no sentido de se fazer cumprir as exigências mínimas como condição para a emissão de parecer prévio favorável à aprovação das Contas Municipais, objeto de auditoria pelas Cortes de Contas. Tais exigências referem-se especialmente às questões dos dispêndios com pessoal, educação e à não existência de déficit orçamentário, responsável por operações de crédito – entre elas a Antecipação de Receitas Orçamentárias, cujo dano, pelo endividamento de médio e longo prazo, acaba por erodir a capacidade financeira dos municípios. O tema ganha novamente oportunidade nesses dias em que a ação do governo federal, voltada para assegurar privilégios fiscais para instalação de uma unidade fabril da Ford Brasil na Bahia, é objeto das discussões dos políticos e da opinião pública em geral, como sendo uma das medidas que caracterizam, em última análise, uma renúncia de receita por conta de um benefício futuro e setorizado de magnitude insuficientemente avaliada, isto é, sem estar claramente definido qual o processo de compensação dos subsídios a serem concedidos. Em outras palavras: quem paga a conta do almoço?

Dois cenários configuram essa questão na atualidade brasileira.
De um lado, as propostas de reforma, que agitam o meio político e os especialistas na matéria, fazendo convergir para o Congresso Nacional diversas sugestões de modificações, desenhando-se, assim esperamos, a perspectiva de sistema tributário mais justo e menos burocrático, e propiciando-se, desse modo, maior equidade na arrecadação dos impostos e maior justiça, onerando-se os agentes de maior capacidade contributiva e aliviando-se a carga da classe assalariada, sobre a qual hoje recaem excessivas exigências impositivas.

Há também em curso no Congresso o projeto da chamada Lei de Responsabilidade Fiscal, instrumento que permitirá um maior controle dos orçamentos públicos, praticamente eliminando o arbítrio hoje exercitado pelos administradores públicos, que muitas vezes levam Estados e Municípios à bancarrota, sem caixa nem mesmo para o pagamento dos servidores, em função do descompromisso com o equilíbrio da gestão econômica e financeira – do qual decorrem gastos desnecessários e desperdícios – e da falta de responsabilização pessoal dos gestores pelos desmandos cometidos.

O outro cenário, que coabita com esse esforço legislativo, é o que contém as práticas que contradizem todo o esforço feito no sentido de moralizar a administração pública. Nele, vamos encontrar a gestão dos negócios oficiais vulnerável à concessões, arranjos e manobras alternativas que visam a beneficiar alguns setores da sociedade, com incentivos fiscais, renúncias de receitas, perdões de dívidas, isenções, renegociações, etc, gerando grandes rombos no erário e acarretando uma política do clientelismo regional e de privilégios que beneficiam alguns em detrimento de outros. Basta mencionar os benefícios concedidos pelo Poder Público a sólidas empresas, nacionais e multinacionais, como financiamento subsidiado, criação de infra-estrutura, terraplanagem, estradas de acesso, isenção de impostos federais, estaduais e municipais, isenção de tarifas de água e de luz etc, para que tenham o privilégio de assentar suas bases em determinado município ou polo. No Brasil, até mesmo a promoção de políticas nacionais consagradas de incentivos fiscais, voltadas para o desenvolvimento de regiões carentes ou pouco desenvolvidas, ao longo dos anos, têm-se mostrado pouco eficientes, conforme os dados disponibilizados pela auditoria recentemente concluída pela Sudene, pela qual se verificou que, nos últimos 40 anos, dos 2.094 projetos financiados por aquela instituição, através do Finor, quase um terço (647) fracassou.
O que podemos esperar, então, dessa guerra fiscal que atinge os Estados e Municípios, sem a ordenação de uma regra mínima estabelecida, que acaba gerando uma concorrência ilegítima, abrindo-se mão do exercício da capacidade legal de imposição tributária e consequente arrecadação? Os resultados dessa ação desenfreada começam a gerar desavenças e questionamentos sobre o princípio federativo, na medida em que as discussões passam a centrar-se nas diferenças econômicas entre os Estados, ganhando cores de discriminação e intolerância regional, restando ameaçada, assim, a própria integridade nacional. Lembremo-nos da influência da desigualdade fiscal – como a derrama, no Brasil, e a lei inglesa que aumentava a tributação do chá, na América do Norte – como fatores desencadeantes de processos separatistas.

A questão central é esta: quanto essa prática de isenções e renúncias fiscais pode ser suportada pelos contribuintes “normais”, colocados à margem dos procedimentos próprios, que formam um labirinto a que somente alguns entes especiais têm acesso, e não todos, beneficiando-se, portanto, poucos em detrimento dos demais? Do ponto de vista de alguns analistas econômicos, atendo-se somente às equações numéricas de entradas e saídas de recursos financeiros, algumas medidas protecionistas regionalizadas são aceitáveis, mas o quadro mais abrangente, incluindo os aspectos da proporcionalidade contributiva e da coesão e integridade federativa, requer maiores cuidados para evitar a adoção dessa prática, de forma pontual e eivada de oportunismo político.
Somente a existência de uma política geral e disciplinadora – estabelecida por uma legislação específica -, ao lado de um forte controle exercido pela sociedade sobre a concretização dos benefícios para a população (que devem superar sempre os custos e encargos), poderia estancar essas descompensações, que ferem a simetria macroeconômica, e acabam por sacudir os alicerces do estado de Direito, na medida em que, pela excepcionalidade injustificada, desencadeiam desigualdades oficializadas, que solapam os princípios constitucionais da equidade e da igualdade, promovendo, em última análise, a desorganização social e a insubordinação civil, movimentos grevistas, desemprego e aumento da miséria, e, provavelmente, da economia clandestina e até dos índices de criminalidade.
Se for eliminado esse clima de clientes especiais, certamente retornar-se-á o rumo da normalidade da gestão pública, desfazendo-se o véu dos privilégios que produz na sociedade constantes expectativas “de se levar vantagem”. Isto possibilitará que os administradores direcionem sua ação naquilo que deve ser priorizado, especialmente no cuidado com a arrecadação pública, valorizando a Receita como um componente fundamental para a gestão administrativa, para que sirva de suporte para as melhorias sociais de que este país tanto necessita, como o estabelecimento do equilíbrio das contas públicas e do compromisso com a legalidade.

(*) Antonio Roque Citadini – é Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo e autor de livros, entre os quais “Comentários e Jurisprudência sobre a Lei de Licitações Públicas” – ed. Max Limonad, SP.

(Diário Comércio & Indústria, DCI, 06 e 11-08-1999)