AS EMPRESAS DE AUDITORIAS NA MARCA DO PÊNALTI
ESCÂNDALO NA ARTHUR ANDERSEN MOSTRA A NECESSIDADE DE REGULAMENTAR ATIVIDADES DO SETOR
Antonio Roque Citadini
A concordata da empresa Enron Corp. – a gigante da energia nos EUA e no mundo – deve ser motivo de reflexão e não só para os americanos, diretamente prejudicados: traz repercussão no mercado de modo geral, para os funcionários da empresa e também para os milhões de poupadores que confiaram na gestão do fundo de pensão por ela gerido.
Apenas não se prejudicam com essa situação aqueles que, conhecendo as circunstâncias e prevendo um desfecho sombrio, transferiram, em tempo hábil, seus recursos financeiros para outros ativos, quiçá até em paraísos fiscais.
Assim, só não amargam prejuízo os poucos que detinham informações privilegiadas e agiram furtivamente.
Repete-se aqui o já ocorrido em diversos “estouros” que vitimaram o mercado financeiro nos últimos anos.
Registra-se também, nesse caso, a péssima atuação da empresa responsável pela auditoria – a Arthur Andersen LLC -, que, como noticiado, não detectou registros contábeis questionáveis, os quais, ao que tudo indica, já ocorriam desde ao menos 1997, conforme confissão da própria Enron. Não apontou, como era seu dever, a prática irregular de transações sem o devido registro contábil.
Todos os analistas, inclusive o ex-presidente da comissão de valores americana, a SEC, reconhecem a gravidade do problema. Não é de hoje que o sistema de auditorias independentes se vem tornando um problema angustiante para o poder público e para o mercado financeiro. Este prega a hipotética liberdade de agir do setor; aquele tem a responsabilidade de estabelecer regras claras e firmes a serem seguidas e que possibilitem um efetivo controle destinado a dar um mínimo de garantia aos investidores, em especial os minoritários.
A auto-regulamentação, conhecida nos EUA como “revisão pelos pares”, mostra-se insuficiente para dar a garantia exigida pela sociedade. Vê-se que a Arthur Andersen se submeteu, em dezembro, à avaliação feita por uma concorrente – a Deloitte & Touche LLP – e dela recebeu aprovação, porque “seus sistemas de contabilidade e de controle de qualidade de auditoria davam ‘garantia razoável de submissão a padrões profissionais'”. Não é de estranhar, pois o interesse é comum: todas agem de igual modo. Não há razão para criticar o trabalho concorrente.
Tenho externado opinião sobre a necessidade de serem estabelecidas regras claras e precisas de auditoria, de modo que o auditor se sinta seguro no exercício de sua missão e os dirigentes das empresas auditadas, desestimulados da prática de retaliação.
É gratificante ver que o ex-presidente da SEC tem, como eu, posição firmada sobre a inconveniência de as empresas de auditoria realizarem, também, os serviços de consultoria. Revelador o fato de aquelas empresas terem impedido que a SEC impusesse regras nesse sentido: isso significaria a extinção de boa parte delas. Foi, assim, muito bem colocada no editorial de 17/1 (A3) a crítica à promiscuidade entre a empresa auditora e as auditadas, quando também se incumbem da consultoria.
Enquanto o trabalho da auditoria é fiscalizar, o da consultoria é apontar caminhos para a ação do gestor na busca de melhores resultados para seus investimentos. É incompatível, pois, fiscalizar – tarefa da auditoria – e, ao mesmo tempo, oferecer conselhos alternativos para tomadas de decisões – tarefa da consultoria.
Quem aponta alternativas tem co-participação na decisão tomada e isso conflita com a responsabilidade que tem o fiscal de apontar eventuais erros nas decisões. Não se pode deixar que o mercado regule a atuação das auditorias. A esperança dos milhões de investidores que perderam seus recursos na pirâmide montada nesse esquema está depositada na ação que venha a tomar o Congresso americano regulamentando apropriadamente a atividade.
É de aguardar que, no Brasil, venhamos a ter, o quanto antes, medidas eficazes, com regras claras que impeçam essa promiscuidade. Assim como há, em outros setores da economia, restrições para operações “casadas” – como é o caso dos bancos e suas financeiras, das empresas pertencentes a um mesmo grupo, das montadoras de veículos e lojas de autopeças -, não se pode aceitar que as empresas de auditoria tenham permissão para realizar, também, as atividades de consultoria.
Tal regulamentação deve abranger também os analistas que não revelam com quais empresas mantêm contratos de consultoria e ficam oferecendo opções de investimentos, como se nenhum interesse tivessem nas empresas que apontam como favoráveis, elaborando o ranking de cada setor. Se o investidor souber do vínculo contratual que o analista tem com a empresa recomendada, saberá, por certo, melhor avaliar o risco.
Assim como os órgãos de controle externo – tribunais de contas e controladorias – agem de acordo com suas leis orgânicas, seus regimentos e manuais de fiscalização, tornando público o resumo dos relatórios das auditorias que realizam, a mesma transparência deveria ser exigida das auditorias privadas.
É preciso estabelecer não só as regras, mas também as penalidades pelo seu não-cumprimento, com a responsabilização quanto aos efeitos desastrosos suportados pelos investidores e pela sociedade. Aguardemos.
Antonio Roque Citadini é conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo.
(O Estado de S. Paulo, Economia, 26/1/2002, P. B-2)