A ENRON E AS AUDITORIAS INDEPENDENTES
(*) Antonio Roque Citadini
Todos os dias inúmeras empresas pedem concordada e igualmente bom número de outras têm sua falência decretada. As conseqüências disto só são percebidas por aqueles particularmente afetados, como os empregados, clientes, credores, fornecedores, concorrentes de cada uma das concordatárias e das falidas; via de regra, quando não nos diz respeito, a tendência é não considerar os fatos.
Diferentemente, porém, quando quebra uma grande empresa como agora, no caso da Enron, dos Estados Unidos – gigante mundial de energia – o assunto toma proporções outras e é motivo de debates e reflexões de especialistas e autoridades.
Lamentavelmente, mais uma vez se vê que as empresas de auditoria independentes falharam no seu trabalho. Assim como na quebra dos bancos brasileiros registrou-se a lamentável desídia daquelas empresas que neles atuaram e deixaram de apontar as falcatruas que os levaram à derrocada, no caso da Enron também se vê que a Arthur Andersen não cumpriu o papel que lhe cabia. Aceitou transações comerciais sem o devido registro contábil e não detectou lançamentos indevidos, aceitando-os sem a documentação apropriada, situação que vinha desde os anos de 1997. Pior que tudo isto, destruiu, ainda, documentos comprometedores.
Todos nós – e em especial, no caso do bancos brasileiros, como o Nacional, o Econômico, o Boavista, o Noroeste, os prejudicados: empregados, clientes e investidores – dificilmente esqueceremos de que sua má administração – que acabou levando-os à quebra – foi respaldada pelas empresas de auditoria independentes, uma vez que ofertaram pareceres favoráveis aos seus balanços.
Os administradores daquelas Instituições abusaram de práticas ilícitas como a manutenção de contas `frias` que chegaram a somar mais da metade do valor do ativo de um banco (caso do Nacional); a transferência para o exterior, da “bagatela” de 242 milhões de reais (caso do Noroeste – isto em uma só conta !) e isto o fizeram sem qualquer constrangimento e nenhum receio dos auditores independentes, que se mostraram coniventes com a prática ilegal.
No caso da Enron, seus funcionários, além de perderem o emprego, também tiveram o desprazer de ver frustradas sus expectativas de aposentadoria pelo próprio fundo de pensão da empresa; foram prejudicados, ainda, os pequenos acionistas e os beneficiários daquele fundo de pensão – aposentados, viúvas e órfãos. A nenhum deles satisfaz, por certo, a demissão de funcionários apresentados como culpados e anunciada ao mundo numa carta aberta de alto custo – porque publicada em página inteira de vários jornais.
O que os prejudicados gostariam ser ver-se ressarcidos do prejuízo que nunca esperavam ter e que não sabem como recuperar. São indefesos, diversamente de alguns poucos que, detendo informações privilegiadas, transferem, em tempo hábil, seus recursos financeiros para outros ativos – quiçá, até em paraísos fiscais. Assim, estes, além de não amargarem qualquer prejuízo, ainda tiram vantagem da situação.
Injustificável ! Agravante maior é ver que não foi simplesmente falha técnica, pois destruir documentos que comprometeriam os trabalhos dos auditores, como fez a Arthur Andersen, é ato criminoso. Um trabalho sério exige que o auditor verifique os documentos e confirme serem hábeis, assim como os correspondentes lançamentos; estes também precisam guardar estreita relação com as efetivas despesas e seus registros devem obedecer às técnicas contábeis, sob pena de serem considerados imprestáveis, tanto uns como os outros.
Outro ponto muito questionado é o das empresas de auditoria também oferecerem consultoria aos seus auditados. Tenho mostrado a necessidade de serem estabelecidas regras claras e definidas para as atividades de auditorias privadas – eliminando a possibilidade de virem a dar consultoria às suas auditadas. Neste ponto, observo que já não estou sozinho; outras vozes se levantam e já estão questionando – não só no Brasil – esta prática perniciosa que conduz à promiscuidade.
Em 1999 a Comissão de Valores Mobiliários elaborou uma norma não aceitando que as atividades de auditoria e de consultoria fossem realizadas pela mesma empresa. E agiu corretamente. Pude, naquela oportunidade, escrever um artigo apoiando aquela decisão. Não é possível aceitar que sejam desrespeitados princípios, como os de independência e de segregação de funções. Há que se respeitar, também, o princípio da transparência dos atos de gestão, tornando públicos os resultados da auditoria para conhecimento dos interessados.
Os órgãos de controle externo – Tribunais de Contas e Controladorias – que agem de acordo com a Constituição, com suas leis orgânicas e seus regimentos, sempre tornam público o resumo dos relatórios das auditorias que realizam nos órgãos jurisdicionados. Isto possibilita aos interessados e à sociedade acompanharem todo o processo, tomando conhecimento da defesa apresentada e do final julgamento, que pode conter determinação de correção ou até aplicação de penalidades pecuniárias e, eventualmente, com representação ao Ministério Público.
Esta transparência, em obediência às normas públicas, não ocorre nas auditorias independentes. Há necessidade de serem estabelecidas regras claras e precisas para tais empresas, de modo que seu auditor se sinta seguro no exercício de sua missão e os dirigentes das empresas auditadas desestimulados da prática de retaliação. É preciso estabelecer-se não só as regras, mas também as penalidades pelo seu não cumprimento, com a responsabilização quanto aos efeitos desastrosos suportados pelos investidores e pela sociedade.
Enquanto o trabalho da auditoria é fiscalizar, tendo sua atuação voltada para a análise dos atos de gestão praticados, verificando e confrontando se o foram em obediência às leis e demais regras estatutárias e regimentais, e, ainda, se os fatos tiveram o devido registro contábil, o trabalho da consultoria é o de apontar caminhos para a ação do gestor na busca de melhores resultados para seus investimentos. Tanto é possível alcançar melhor resultado diminuindo custos de produção, quanto promovendo alterações ou eliminação de produtos ou até de procedimentos.
Assim, é incompatível fiscalizar – que é o trabalho da auditoria – e ao mesmo tempo oferecer conselhos alternativos para tomadas de decisões – tarefa da consultoria.
Apontando alternativas tem, o consultor, co-participação na decisão tomada e isto conflita com a responsabilidade que tem o fiscal de apontar eventuais erros nas decisões. Não se pode deixar que o mercado por si regule a atuação das auditorias. A esperança dos milhões de investidores que perderam seus recursos na pirâmide montada neste esquema está depositada na ação que venha a tomar o Congresso americano regulamentando apropriadamente a atividade.
Outros setores da economia não aceitam operações ´casadas´ como é o caso dos bancos e suas financeiras, das empresas pertencentes a um mesmo grupo, das montadoras de veículos e lojas de auto peças. Isto deve servir de exemplo para as atividades de auditoria e consultoria privadas.
Só nos resta aguardar que sejam estabelecidas, o quanto antes, medidas eficazes, com regras claras que impeçam esta promiscuidade.
(*) Antonio Roque Citadini é Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, Presidente do Instituto Ruy Barbosa, e autor de livros, entre os quais “O Controle Externo da Administração Pública” e “Comentários e Jurisprudência sobre a Lei de Licitações Públicas” – ed. Max Limonad, SP.
(Diário Comércio & Indústria, DCI, 30-01-2002, p.2)