DIREITOS E PRIVILÉGIOS ADQUIRIDOS
Antonio Roque Citadini (*)
Nos últimos meses, especialmente no período de discussão das Emendas Constitucionais para a assim chamada “Reforma do Estado” – Reforma Administrativa, Reforma Previdenciária, etc – vêm sendo questionados pela Imprensa, inclusive com a participação de juristas, direitos e privilégios que teriam sido conseguidos ao longo dos anos, por parte do funcionalismo público, e que, na visão do Governo federal e dos adeptos de sua política, necessitariam ser retirados.
Assim é que são discutidos desde altos salários, acumulações de pensões e proventos, de cargo em comissão com proventos de aposentadoria, até vantagens obtidas por decisão do Poder Judiciário, asseguradas pela coisa julgada, que, embora concedidas de forma legal constituiriam privilégios inaceitáveis pela nova ordem que se desenha na Administração Pública brasileira.
Daí porque, afirma-se que mesmo constituindo direitos legalmente adquiridos, devem ser revistos, adequando-se às novas disposições que se pretende incorporar à Constituição.
Como sabemos, a própria ordenação do país como Estado Democrático de Direito baseia-se no tripé constitucional consagrado do respeito e intocabilidade do ato jurídico perfeito, do direito adquirido e da coisa julgada.
São estes três “valores” que ordenam toda a estrutura jurídica-legal do Estado democrático brasileiro.
No caso das reformas administrativas e providenciárias propostas pelo Governo Federal, diz-se que não há direitos adquiridos, mas privilégios adquiridos, posto que eles geraram dispêndios grandiosos para o Estado, e não estariam condizentes com a realidade econômica que estamos vivendo.
Não há dúvidas de que em muitas áreas do funcionalismo público existem evidentes discrepâncias de valores e vantagens que chocam a todos. Mas são exceções, e torna-se necessário alterar este quadro.
Seria, no entanto, o melhor caminho de mudança quebrar um dos mais importantes dos tripés da estruturação do Estado Democrático, para se economizar milhões de reais pagos por altos salários, aposentadorias e pensões ?
Terão sido esses grupos de funcionários os únicos a terem privilégios adquiridos, e que hoje nos levam a propor tão violenta e drástica alteração nos valores jurídicos do país, isto é, o de instalar a insegurança dos direitos obtidos de perfeita conformidade com o sistema jurídico vigente, em ato legal e sem qualquer irregularidade ?
A Sociedade brasileira precisa refletir se a quebra de um dos três pilares básicos – o do direito adquirido (na verdade, dos outros dois também, já que muitos foram assegurados por ato judicial) vale a pena.
Talvez fosse melhor adotarmos o caminho da Inglaterra, onde, há poucos dias, o novo Primeiro Ministro Tony Blair criou um imposto a ser arrecadado das empresas que foram privatizadas de forma ruinosa para o Estado, delas arrecadando 7 bilhões de libras esterlinas ( 10 bilhões de dólares ). A propósito: o governo sabia quais empresas públicas foram transferidas para o setor privado a preço vil, e as novas empresas privadas também o sabem e nem sequer discutiram, recolhendo o imposto altíssimo em um só dia !
É certo que no Brasil, ao se quebrar tão importante(s) princípio(s) não se estará atingindo somente as viúvas, pensionistas e funcionários com super – salários, mas permitir-se-á ao Governo, especialmente aos próximos Governos, em qualquer momento que julgarem oportuno ou necessário, socorrerem-se de tal precedente.
Nada obstará, por exemplo, um novo Governo no Rio Grande do Sul – não concordando com o empréstimo generosamente concedido à General Motors ( e que gerou em recente passeata a faixa “o dinheiro da PM foi para a GM” ), refazer os cálculos de taxas de juros e cobrar uma nova dívida. Afinal, poderá dizer a eles: a GM teve um privilégio – não um direito legal e contratualmente assegurado – e não há privilégio adquirido !
Mais significativo, ainda, é o caso das empresas estatais privatizadas, algumas com vantagens fiscais (área siderúrgica) ou com garantia de preços de insumos (setor petroquímico), pois todas essas vantagens fiscais, tributárias, bem como os subsídios, poderão ruir no momento em que qualquer Governo entenda-os indevidos (como de resto o são) !
O mesmo poderá ocorrer na situação de todos os outros incentivos fiscais – forma clara de privilégios com dinheiro público – que é fartamente distribuído por Estados e Municípios nos dias atuais, e até os empréstimos do BNDES, com juros que abrem o sorriso dos empresários.
O próprio PROER – Programa de restruturação bancária – que vem cobrando juros generosamente baixos e privilegiados para os bancos, poderá, numa penada, refazer os valores devidos ao Banco Central e cobrá-los dos Bancos ou seus controladores, antes favorecidíssimos.
Ou a Sociedade entende relevante a manutenção do tripé inicialmente afirmado, que constitui base da estruturação constitucional e legal do país e a eliminação das distorções e aposentadorias exageradas devem obedecer a essa estruturação ou ficar-se-á na dependência do Governo, que poderá inventar novos privilégios e privilegiados a serem atacados por suas mudanças constitucionais e legais.
Adeus segurança jurídica !….
(*) Antonio Roque Citadini é Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo e autor dos recentes livros O CONTROLE EXTERNO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA e COMENTÁRIOS E JURISPRUDÊNCIA SOBRE A LEI DE LICITAÇÕES PÚBLICAS, Ed. Max Limonad.
(Diário Comércio & Indústria, DCI, 12-08-1997, p.4)