A DÉCADA PERDIDA OU O MUNDO PÓS-ÁSIA
Antonio Roque Citadini
E essa crise, em que estão envolvidos quase todos os países asiáticos, com repercussão generalizada nos mercados e nas economias globalizadas, vem recebendo extensa cobertura jornalística, em que são analisadas suas conseqüências, mas nem sempre suas causas.
De fato, pouco se tem falado sobre os argumentos antes usados para elogiara o processo de atuação dos governos dos países então chamados “emergentes”, e dos processos econômicos e desenvolvimentistas que utilizavam.
Durante muitos anos, ,já há mais de uma década, freqüentes eram as matérias, na mídia, com elogios àqueles países. Virtudes, qualidades, exemplos lisonjeiros, indicadores econômicos e sociais, tudo foi reiteradamente divulgado com grande simpatia, quase que com inveja por não estar nosso país nas mesmas condições.
Mas a crise chegou com grande e insuspeitada fúria. Não respeitou país algum, grande ou pequeno, rico ou em desenvolvimento, todos abalados impiedosamente e convertidos – como num passe de mágica – de heróis exemplares em vilões execráveis.
Como aquelas economias – e os governos que as conduziam – foram muitos elogiados, hoje os arautos bem-pensantes, que então lhes não pouparam encômios, procuram explicar as sucessivas crises daqueles países, num verdadeiro exercício de mistificação, para tentar justificar o acontecido, sem confessar claramente que erraram e induziram em erro a opinião pública.
Quando não o Governo.
Veja-se, por exemplo, o artigo “Uma questão de Valores”, do embaixador, economista, deputado federal, ex-ministro Roberto Campos (Revista Veja, 2/9/98,p.22): “Não há nada tão bem-sucedido quanto o sucesso”, diz o refrão. É o que aconteceu com os chamados “valores asiáticos”. Durante uma década e meia os Tigres Asiáticos (seguidos depois pelo sudeste da Ásia e China continental) bateram recordes de desempenho econômico, superando em muito outros países emergentes, quer na velocidade do crescimento, quer na cura da pobreza”.(…) “Agora, com a longa recessão japonesa e a implosão financeira no Sudeste da Ásia, os “valores asiáticos” estão sendo avaliados pejorativamente. Será aliás legítimo falar-se em “valores asiáticos” numa região onde se misturam culturas tão diferentes como o budismo, o confucionismo e o islamismo?” Parece puro confusionismo!…
Mas há especialistas com critérios mais lúcidos – e que não caíram no erro de observação encomiosa equivocada da “pseudo” explosão de crescimento econômico (mas não tanto social), e que hoje podem tranqüilamente analisar a situação, sem mistificar e sem perder a face.
Refira-me, por exemplo, ao economista Paul Krugman, da MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts) que, em artigo recente (The New York Times e o Estado de São Paulo, 30.08.98, b-10), ao analisar o que denomina de “O Grande Tombo da Ásia”, afirma que “nunca antes, no curso dos acontecimentos econômicos – nem nos anos iniciais da Depressão de 1930 – um segmento tão amplo da economia mundial sofreu uma queda tão devastadora”, a ponto de “a América Latina, outrora campeã em instabilidade econômica (ter perdido) seu título”.
Analisando a situação, aquele renomado professor divulga alguns dados assustadores:
a) Hong Kong anunciou, no fim de agosto, que sua economia encolheu 5% no segundo semestre do ano passado e 2,8% na primeira metade deste ano, em sua pior recessão desde a 2°Guerra Mundial;
b) o PIB da Indonésia deverá escolher à espantosa taxa de 15,1% neste ano (comparando a pior recessão dos EEUU, no pós-guerra, foi de 2,1% em 1982);
c) a dívida bancária do Japão não seria de USS 500 bilhões, mas de um trilhão de dólares!
Vejamos os elogios que se faziam tão grandes que hoje as criticas, principalmente dos “bem-pensantes”, “formadores” da opinião pública nacional, soam falsas, quase uma desculpa pelo erro, que seus atuais críticos não gostam de assumir.
A Ásia foi exaltada por ostentar alguns indicadores macroeconômicos “exemplares”:
a) eficiência: era capaz de produzir por baixos preços para assegurar a ampla exportação e gerar superávit na balança comercial – o que demonstra a vitalidade de sua economia;
b) concorrência: os países asiáticos produziam melhor e por preços competitivos, podendo disputar mercados com países europeus e americanos, inclusive EEUU;
c) boa escolaridade do operário: era destacada, em infindáveis estatísticas a melhor qualidade de ensino dos países asiáticos como fator relevante de sua capacidade produtiva. As nações asiáticas e eram elogiadas pela “revolução” silenciosa que teriam efetuado na área de ensino, o que as qualificava com destaque num mundo de economia global e altamente competitiva. Foram realçados os anos de estudo do operário asiático, mostrando-a superioridade em relação a quase todos, europeus, americanos, argentinos e brasileiros. O melhor ensino fazia a diferença. Mas nada disso devia ser verdade!;
d) inexistência de legislação trabalhista: como ocorria, e ocorre, em alguns dos ex-“tigres”, era apontada como fator decisivo para a capacidade competitiva dos seus produtos. Daí decorria a grande liberdade de contratar e demitir (mas fazendo “tábua rasa” da longa e penosa conquista dos direitos laboriais e sociais pela parte econômica e politicamente mais fraca do processo produtivo). Salários menores que os pagos aos trabalhadores europeus, americanos e até brasileiros (“protegidos” por “atrasadas” leis trabalhistas e sindicais!). Comparações feitas, o melhor para o mundo era seguir o exemplo asiático: produzir muito com baixos salários e quase nenhum encargo trabalhista – era preciso, defendiam, diminuir ou eliminar o tal do “custo Brasil”, lembram-se?!
e) Capacidade de poupança: era reiteradamente elogiada a capacidade que tinham os países asiáticos de economizarem e pouparem.
Em síntese, tal era o elogiado quadro de legislação remuneratória, de seguridade social e previdenciária mínima, quase inexistente – para não onerar as empresas, e, por conseguinte, o custo final dos produtos. Ínfimas eram as vantagens de previdência, relegando os trabalhadores a um final de vida desalentador.
Essa grande capacidade de produzir, com baixos salários, quase sem encargos previdenciários, e sem onerosas aposentadorias, recebeu continuados elogios, como a indicar que nosso país deveria seguir na mesma trilha, rompendo com legislações que lembram um Estado social, mau exemplo trazido pelos países europeus.
Aliás, editorial de “O Estado” (Uma proposta para “salvar a Ásia”, 30.8.98, p. A.3) lembra que o economista Krugman “foi um dos primeiros a por em dúvida a solidez das economias da Ásia, quando os bempensantes ainda as tomavam por modelos para o mundo”.
Diz Krugman que “hoje nós todos sabemos o que deveríamos ter sabido durante os anos de acelerado crescimento: que havia um “lado sombrio” dos “valores”.
O sucesso dos empresários asiáticos dependia do chamado “capitalismo de compadres”, baseado particularmente em investimentos desnecessários. Figurões sul-coreanos, por exemplo, eram financiados de bom grado pelos bancos locais, desde que o tomador conhecesse as pessoas certas no governo.
Pode-se imaginar o tráfico de influência, a advocacia administrativa, a corrupção subjacente, ainda mais em se considerando que a maioria dos países asiáticos, hoje em crise, tinha regime autoritário e fechado. Bem, o preço de tudo, como sempre, corre por conta do Erário, ou seja, foi e está sendo pago pelos povos daqueles países e hoje, na economia globalizada, o prejuízo está sendo universalmente “socializado”, embora no âmbito do mais terrível capitalismo financeiro selvagem!
Os dados que os países asiáticos revelavam e seus arautos repetiam – índices de crescimento, reservas dos Bancos Centrais, índices relativos ao ensino, sempre recebidos como corretos, eram, na verdade, o lado sombrio.
Elucidativa é a afirmação de Merton Miller (in “A crise financeira no sudeste asiático”, Folha de S. Paulo, 30.8.98, p. 2-2), falando especificamente da Tailândia – observação que pode ser generalizada: “o erro mais grave do Banco da Tailândia, que finalmente seria fatal, foi esconder a verdade sobre o montante das reservas” (…) “A verdade é que a falta de transparência vem sendo a tradição dos bancos centrais há muito tempo, não só na Tailândia, mas também nos EUA e no Japão, e é o caso do FMI”.
Os países da Ásia, sem verdadeiras instituições, trocaram os anos 80 (época em que países latino-americanos reconstituíram seus Estados com instituições democráticas) para produzir efêmeros e pequemos crescimentos econômicos – que agora vemos que não eram sustentáveis.
Exemplo negativo na organização dos Estados asiáticos situa-se no campo das licitações, tragicamente elogiado pelos organismos internacionais, e que agora se revela danoso.
Realmente, recomendava-se as formas, ágeis e desburocratizadas de o Estado contratar obras, serviços e compras, sem grandes disputas entre participantes (eram escolhidos “os melhores”) não ocorriam suspensões por medidas judiciais ou administrativas. Os agentes governamentais tinham grande poder de decisão, praticamente não havia controles judiciais e administrativos e, sem disputa entre particulares, o Estado transformou-se em agência buscando recursos para adjudicar obras e serviços, com contratações a qualquer preço e sem visar atender ao interesse público. Depois de terem endossado o sistema por tantos anos, causa surpresa que, agora, os organismos financeiros internacionais o questionem como um dos grandes fatores que levaram à recente crise asiática.
O Estado “compadre” gerava instituições instáveis fadadas ao desmoronamento ao menor acidente de percurso. Faltava transparência. A Ásia mentiu para o mundo porque não tinha verdadeiras instituições, não tinha controle. A Ásia terá que reconstruir suas instituições, seu sistema bancário, sua economia, seus órgãos de controle.
Está na hora daqueles que passaram anos recomendando o modelo asiático para os demais países (em desenvolvimento, emergentes, etc), reconheceram e confessaram que ele não é exemplo a ser adotado.
O Brasil, que está construindo novo modelo de Estado, deve acautelar-se, avaliar a experiência asiática, evitando seus erros, Que tantos danos acarreta para a população.
As instituições democráticas reconstituídas pelos países latino-americanos, embora ainda imperfeitas, devem ser aperfeiçoadas evitando-se o mau exemplo asiático.
O Estado deve organizar-se de forma a tornar transparentes os atos dos administradores não devendo os índices macroeconômicos constituir-se nos únicos indicadores dos países.
Afinal, um bom pais é aquele em que o povo vive bem, com seus direitos respeitados e com a possibilidade de seu cidadão progredir.
Antonio Roque Citadini – é Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo.
(Diário Comércio & Indústria, DCI, 02-10-1998, p.4)