OS MUNICÍPIOS E A CRISE
Antonio Roque Citadini
Na crise globalizada que nos atinge, cada um se defende como pode. Dentro do sistema político-administrativo brasileiro, quem pode menos são os Municípios. A União detém o grande poder regulamentador e reage rapidamente às circunstâncias desfavoráveis, com a edição de medidas provisórias, decretos e portarias. Os Estados contam também com dispositivos de compensação em períodos de condições econômicas desfavoráveis, incluindo a capacidade de emitir títulos, obter empréstimos internacionais e rolar a dívida pública com a interveniência do governo federal.
Já os Municípios, especialmente os de pequeno e médio porte, encontram-se praticamente engessados diante das crises recessivas, quando perdem parte da capacidade econômica, em decorrência da queda da arrecadação. Como se não bastasse a pequena margem de manobra com que contam para alterar o panorama orçamentário, uma vez que só lhes resta praticamente a alternativa de bater às portas dos bancos à procura de empréstimos a juros elevadíssimos, ainda sofrem diretamente com a questão do desemprego e da inadimplência.
Enquanto que, para o cidadão comum, a União e os Estados são representações quase que virtuais – o que dificulta o contato direto com os responsáveis pelos órgãos administrativos -, na esfera do Poder Público Municipal, na maioria das cidades brasileiras, essa relação é muito mais objetiva e os habitantes acabam literalmente batendo às portas das prefeituras e câmaras, em contato direto com as autoridades, na tentativa de solução de seus problemas, pouco importando quem é o maior responsável pela crise. O fato concreto é que, com o desemprego, a demanda por serviços de saúde e assistência social aumenta, sobrecarregando os já combalidos orçamentos que se tornam ainda mais enfraquecidos com a inadimplência dos contribuintes em dificuldade (taxas de água, IPTU, etc.).
O Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, no exercício de suas atribuições legais, vem analisando atentamente a situação das contas dos municípios e tem observado, nos últimos anos, uma progressiva deterioração da saúde financeira dessas comunidades como um todo, com a verificação de alguns indicadores básicos. Estudos estatísticos efetuados na Unidade Regional de Sorocaba do Tribunal de Contas do Estado, compreendendo o período entre 1994 a 1996, relativamente aos indicadores Execução Orçamentária, Execução Financeira, Aplicação no Ensino e Gastos com Pessoal dos 64 municípios da Região, chegaram a conclusões importantes. Os estudos de 1997 estão em fase de conclusão e reforçam essa tendência.
Com relação ao resultado da execução orçamentária, observaram-se os seguintes atos:
1) Equilíbrio ou superávit orçamentário: embora não se conheçam exatamente as causas, verificou-se uma diminuição, à razão da metade, de um exercício para outro, do número de municípios que obtiveram essa boa condição, isto é, 16 municípios em 1994; 8 no exercício subseqüente; e apenas 4, em 1996.
2) Déficit de até 5%: em 1994, um quarto dos municípios estava nessa situação; em 1995, somente 6; número esse que em 1996 subiu para 11, correspondendo a um quinto da região.
3) Déficit entre 5% e 10 %: nesta faixa, o número saltou de 8 municípios, no ano de 1994, para 17, no ano seguinte. Já em 1996, somente 14 municípios enquadram-se no percentual mencionado.
4) Déficit acima de 10%: justamente na faixa em que o déficit revela maior desequilíbrio, os números são preocupantes, por dois motivos, a saber:
a) em 1994, eram 23 os municípios que superaram o citado percentual; no exercício seguinte, 32, correspondendo esse número à metade dos municípios da região; em 1996, o número subiu para 33;
b) a evolução dessa anomalia atingiu 51% dos municípios da região.
Tendo em vista que o Tribunal de Contas do Estado já vinha considerando, desde 1996, motivo para emissão de parecer desfavorável à aprovação das contas déficits em torno de 10 %, e com incisivas recomendações para redução e/ou eliminação de déficit em todos os casos, os números ora analisados revelam senão um deliberado descontrole administrativo, ao menos uma incontrolável execução orçamentária fora dos padrões normais de disciplina orçamentária. Ou não houve contenção de despesas – estabelecendo-se prioridades, cortando-se o supérfluo, o adiável – , ou a receita do município foi mal orçada, superestimando valores que não se podiam realizar. Em alguns casos, as duas coisas.
Considerando-se uma certa estabilização da moeda após mais de três anos de Plano Real, parte desse agravamento da situação só pode ser atribuída à recessão, ao desemprego, à diminuição da atividade econômica, gerando a não realização de receitas orçadas ou até mesmo queda real da arrecadação (menor atividade econômica, concessão abusiva e/ou sem cautelas de incentivos fiscais, etc.), ou a pura e simples inadimplência dos munícipes quanto às obrigações tributárias locais, anistias ou abatimentos fiscais, etc., ou o conjunto desses fatores.
Analisemos, agora, a questão relativa aos “gastos com pessoal”, ou seja, com a folha de pagamento do funcionalismo.
Como se sabe, a Constituição de 1988 instituiu o limite provisório de 65% do valor da receita corrente para os gastos com pessoal para a União, Estados e Municípios. Posteriormente, a Lei Complementar nº 82, de 27.3.95 (conhecida como “Lei Camata”, por ser de autoria da Deputada Federal Rita Camata), estabeleceu o limite de 60% e concedeu, para o ente público que em 1995 tivesse superado esse limite, a faculdade de promover redução nas despesas com o funcionalismo, à razão de um terço por ano, de modo a adequar-se ao limite em 1998. Mas se, por exemplo, um município embora dentro do limite em 1995, ultrapassou-o no ano seguinte, não poderá gozar da redução trienal.
Pelo levantamento da região de Sorocaba, relativamente aos municípios que mantiveram os gastos dentro do limite, observou-se uma ligeira redução entre os exercícios de 1994 e 1995, isto é, de 62 para 61 municípios, de um total de 64. Em 1996, esse número caiu significativamente para 51 municípios.
Como para todos os levantamentos ora comentados há informações oficiosas da Regional de Sorocaba de que os estudos relativos a 1997, que estão em fase final, reforçam as mesmas tendências, verifica-se que a situação quanto ao descumprimento do limite de despesa de pessoal agravou-se.
Considere-se, ademais, que a partir do corrente ano com a operação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério, haverá retenção de 15% de diversos impostos, o que levará à diminuição do universo da receita corrente que serve de base de cálculo para o limite da Lei Camata. Em outras palavras, municípios que hoje já gastam além desse limite terão ainda menos recursos para pagar a mesma folha, e ainda assim se não aumentarem os seus quadros funcionais ou não concederem reajustamento salarial. Aliás, pela lei Camata não poderão fazer quaisquer revisões, reajustes ou adequações de remuneração que impliquem aumento de despesas (§ 3º do art. 1º)
De qualquer modo, é relevante lembrar que o Tribunal de Contas do Estado tem considerado a inobservância dos limites da Lei Camata como motivo suficiente para emissão de parecer prévio desfavorável à aprovação das Contas Municipais.
A questão relativa à aplicação no ensino, como os dados referentes aos exercícios de 1994/1996, é examinada dentro dos parâmetros vigentes anteriormente à Emenda Constitucional nº 14/96 e Leis nº 9394, de 20.12.96 e nº 9424, de 24.12.96, ou seja, sujeita-se ao percentual de 25% da receita proveniente de impostos (C.F. art. 212).
Neste particular, a situação não é nada elogiável, porque o respeito à determinação constitucional apresenta significativa evolução. Com efeito, em 1994, 57 municípios aplicaram o mínimo de 25% no ensino. Em 1995, 48 apenas. No exercício de 1996, 43 municípios destinaram o percentual exigido pela CF ao ensino, ou seja, neste último exercício cerca de um terço das comunas da região de Sorocaba deixou de cumprir o preceito constitucional.
Ora, esse descumprimento não fica impune, pois grande será o número de Prefeitos que terão suas Contas Anuais com parecer do Tribunal de Contas do Estado pela desaprovação. E a situação certamente se agravará com entrada em operação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério.
Não é menos preocupante a situação dos 64 municípios da região, quanto aos dados da execução financeira. Esta avaliação relaciona o passivo financeiro do município (total das dívidas em 31 de dezembro) com a receita arrecadada no exercício (individualmente, para cada município, corresponderia ao índice de liquidez, ou seja, de quanto disporia o município para pagar cada R$ da dívida, cálculo este que não estamos apresentando). O estudo mostra percentualmente e em números absolutos a quantidade de municípios em cada uma das situações tomadas como parâmetro.
Assim, em 1994, tinham superávit financeiro 17 Municípios; no exercício posterior, só 7 localidades tinham ativos suficientes para cobrir seu passivo financeiro; e, em 1996, apenas 4, de um total de 64 municípios.
Em 1994, havia 22 municípios com déficit financeiro de até 10%; em 1995 esse número caiu para 20; e no ano subseqüente para 7. Todavia, esta aparente melhoria pouco significa, pois um número maior de municípios concentra-se na faixa que excede o percentual mencionado. Ou seja, tem-se uma verdadeira inadimplência em ritmo assustadoramente crescente, a saber: 24 municípios, em 1994; 36, em 1995; e 52 no exercício de 1996, atingindo 81,67% dos municípios daquela região, considerada desenvolvida e de elevado padrão. E nada indica que a situação possa melhorar. Ao contrário, já não bastasse a chamada Lei Kandir ter acarretado a perda de recursos por Estados e municípios, algumas das anunciadas medidas do governo federal (como por exemplo a Reforma Tributária, em fase final de elaboração e de encaminhamento ao Congresso Nacional) levarão os municípios à situação de insolvência e de penúria, sem receitas para prestar os serviços básicos à população e para honrar a folha de pagamento e os compromissos financeiros com fornecedores. E o governo federal acaba de anunciar legislação complementar sobre a demissão de servidores, nos três níveis, o que gerará mais desemprego e mais recessão, em verdadeiro círculo vicioso.
No artigo “A atenção que o Município merece” (Diário Popular, 13.9.98, p. 2), o presidente da Associação Paulista de Municípios, Marcos Monti, faz diversas considerações sobre os encargos novos que os municípios tiveram que assumir e sobre a concomitante – e paradoxal – perda de receitas que sofreram, o que aliás é de conhecimento generalizado. É sabido que a Constituição de 1988 deu mais recursos aos municípios, mas os governos federal e estaduais foram progressivamente transferindo encargos e atribuições, antes de sua responsabilidade, aos municípios.
Quanto à municipalização da saúde com a criação do SUDS, sucedido pelo SUS, a participação federal era de 30%, a estadual 50% e a do município 20%, ao passo em que hoje os municípios tiveram que assumir de 80% a 90% dos gastos com a saúde.
Na área da educação, a municipalização do ensino fundamental redundou na retenção de 15% das receitas de ICMS e FPM de todos os municípios, para formar o Fundo de Valorização do Magistério.
Por último, lembra outras medidas que, diminuindo-lhe as receitas sem formas de compensação, estão levando os municípios à grave crise financeira e administrativa: a extinção do Imposto sobre a Venda e Varejo de Combustíveis, a criação do Fundo de Estabilização Fiscal e a chamada Lei Kandir (isenções do Imposto sobre Produtos Industrializados para exportação).
Cabe ressaltar que esses dados referem-se a uma região economicamente forte do Estado, o que nos leva a considerar a possibilidade de encontrarmos números piores em regiões economicamente mais fracas, menos industrializadas, menos desenvolvidas.
A fragilidade institucional dos municípios decorre essencialmente do modelo centralizador adotado pelo Brasil, em que os recolhimentos dos tributos são preponderantemente carreados à União e aos Estados, reduzindo a capacidade de arrecadação própria das comunidades, que passam a depender da redistribuição feita pelas dotações e repasses federais e estaduais, para complementar o seu quadro orçamentário, especialmente pelo Fundo de Participação dos Municípios. Agrava essa questão o fato de que os municípios, de um modo geral, revelam com o passar dos anos um certo conformismo com relação à essa dependência, perdendo a vitalidade e a criatividade para conquistar maior espaço institucional.
E é de temer que o projeto da Reforma Tributária, na agenda imediata do atual governo federal, não reduza ainda mais a capacidade de arrecadação dos municípios, ao contrário do que se esperava. Como parece que vai acontecer com a pretendida criação do Imposto sobre o Valor Agregado, de competência tributária da União, que substituiria os atuais impostos sobre produtos industrializados (IPI, federal), ICMS (estadual) e ISS (municipal), de cujo produto da arrecadação participarão Estados e Municípios, mas que representa excessiva concentração de poder na área federal e terrível dependência dos Estados e Municípios, quebrando a própria estrutura federativa.
Medida altamente conveniente seria a fixação de percentuais mínimos de arrecadação própria para que os municípios pudessem receber contrapartidas equivalentes dos repasses do Fundo de Participação dos Municípios, como forma de incentivar o esforço da comunidade para melhorar sua força interior e a conseqüente capacidade de obter seus próprios recursos.
Nunca é demais lembrar que o fortalecimento das células que compõem o tecido social do país faz aumentar o sentido de cidadania, na medida em que as pessoas passam a se sentir mais participativas e mais responsáveis pelos destinos do país.
E parece que é contrário o que o Governo Federal está pretendendo.
Antonio Roque Citadini é Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado e autor dos recentes livros “Comentários e Jurisprudência Sobre a Lei de Licitações Públicas” e “Controle Externo da Administração Pública”, ambos da Ed. Max Limonad.
“O PREFEITO”, ANO II, Nº. 75, 15/10/1998, P. 10-11