Antonio Roque Citadini
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) assumiu posição favorável a candidatos avulsos na próxima eleição constituinte já que, há algum tempo, esta tese vem sendo defendida por alguns bispos, isoladamente, nas reuniões sobre a campanha por uma Assembléia Nacional Constituinte.
Em defesa da sua tese, a CNBB pede que “não falte à Constituinte a voz dos segmentos marginalizados, da juventude questionadora sem resposta, dos trabalhadores conscientes”… Ressalta o órgão máximo da Igreja Católica que todas estas “forças atuantes, despertam.., não se reconhecem ainda nas camadas altas dos partidos políticos”. Em outras palavras, a Igreja afirma que há setores da sociedade que não encontram caminhos de representação nos partidos políticos, daí porque é preciso estabelecer-se um mecanismo que garanta a estes grupos sua vez na Assembléia Constituinte: “O Brasil há. . , de fazer-se ouvir ao lado dos partidos, pelos sindicatos, pelas universidades, pelas associações de bairros e de vizinhança, pelas comunidades intermediárias, movida pela vivência da fé cristã.”
Ao expor sua posição, a CNBB chega até a lembrar o exemplo de 1934 (quando foi garantida uma participação de representantes de entidades), alertando – no entanto – que esta representação de 1934 “vinha marcada de perigoso entendimento corporativo”.
Este problema – levantado agora pela CNBB – requer de todos os segmentos envolvidos na discussão sobre a eleição constituinte de 86 um debate franco, aberto e em que seja colocada a enorme importância para o futuro do País das decisões do novo Congresso brasileiro.
Alinhamo-nos, como já afirmamos em artigo anterior, entre os que defendem para o Brasil um regime democrático representativo, pluralista, no qual os conflitos da sociedade sejam administrados e superados pela indispensável participação dos partidos políticos.
Ao defendermos um regime de democracia representativa, colocamos nas mãos dos partidos políticos a própria estabilidade do regime, isto é, se não tivermos um sólido sistema partidário (democrático, com todas as corrente de opinião organizadas), o Estado democrático não conseguirá sobreviver às crises e não terá capacidade transformadora que a sociedade moderna exige. Entrará em colapso e cairemos, novamente, em uma alternativa autoritária.
A posição da Igreja Católica – por mais que seus defensores procurem dosar a pílula – é, lamentavelmente, uma proposta que caminha contra a consolidação de um sistema partidário.
Ao propor a construção de um sistema de representação “fora dos partidos” e com vínculos a entidades da sociedade civil (antigamente chamadas “forças vivas da Nação”) a Igreja atinge todo o quadro partidário e retira-lhe a legitimidade indispensável para termos um regime democrático estável e transformador.
Ainda que o texto da CNBB procure negar, a proposta é nitidamente corporativista. É claro que vem com uma nova linguagem, misto de um populismo ginasiano e uma visão salvadora do mundo, mas não deixa de afastar-se do eixo de antigas propostas fascistas, que retira do cenário nos partidos políticos e entrega a representação da população às “entidades naturais da sociedade”.
A simples lembrança da Constituinte de 1934 deveria servir de alerta para os que desejam um regime democrático representativo no País, pois essa Constituinte foi a própria negação de um Estado democrático.
Os partidos políticos brasileiros são visivelmente imperfeitos (afinal, ninguém sai de uma ditadura ileso) e nosso empenho deve ser no sentido de ampliarmos e aperfeiçoarmos o quadro partidário, garantindo-se ampla liberdade de organização e autonomia política pára as agremiações partidárias. A proposta da CNBB é exatamente o contrário, pois com ela os partidos estarão enfraquecidos e sem condições de assumir seu relevante papel na nova democracia.
A proposta corporativa da Igreja ficará mais nítida se nos defrontarmos com sua viabilização prática. Como fazer para termos candidatos avulsos ou de entidades? Estes candidatos disputarão em lista contra os partidos políticos ou terão um número de vagas reservadas na Constituinte? Quanto mais aprofundarmos a discussão mais nítido ficará o caráter corporativo desta proposta católica.
A democracia é – em todos os países onde vigora estável – o regime dos partidos políticos. Sem estas instituições sólidas, com raízes na sociedade, o sistema democrático representativo naufraga. A tese defendida pela CNBB – e lamentavelmente por parte das instituições dos advogados – fere de morte os partidos políticos. E o sistema democrático, resistirá?
(Diário Comércio & Indústria, 22/2/1985)