Cortesia com dinheiro alheio
Quantos hospitais ou postos de saúde podem ser construídos e administrados com US$360 milhões? O Tesouro paulista deixou de arrecadar esse total por anistia fiscal concedida a bares, restaurantes e empresas de software, perdoando a dívida de 300 mil contribuintes devedores do ICMS. Na época, a importância anistiada era segredo de Estado. O Tribunal de Contas do Estado incumbiu-se de por fim a esse tipo de mistério. No relatório das contas de 1992, o conselheiro Antonio Roque Citadini não escondeu críticas severas à estranha medida de anistia.
Motivos não faltam para essa crítica. Para quem acompanha a deterioração da coisa pública em São Paulo, que apenas começa no salário para o ao Funcionalismo (com hospitais fechados porque não há médico interessado em trabalhar pelo salário oferecido, tudo confirmado por Boletim de Ocorrência na delegacia mais próxima), causa espécie saber que se concedeu a anistia fiscal nesse montante. Para os que gostam de comparações, US$360 milhões é o custo anual aproximado da Universidade de São Paulo! Ou mais de um terço do total da queda de arrecadação do ICMS do Estado – segundo Clovis Panzarini, assessor de Política Tributária da Secretaria da Fazenda, em 1992, a queda alcançou “pouco mais US$1 bilhão” -, explicação favorita de todo secretário de Estado na gestão Fleury, para justificar erros e incompetências.
O governo tem em sua defesa a anuência da Assembléia para o perdão, inclusive da Liderança do PT, em nome da proteção dos “microempresários”. Antes de tudo, é difícil dizer em termos de planejamento tributário o que aproxima um sofisticado programa de computação de um bom misto-quente, mas Legislativo e Executivo consideraram que 400 empresas de informática e 300 mil bares, restaurantes e similares mereciam gentil tratamento benevolente do Estado. Tudo com a mesma desculpa petista de que eram “microempresários” em dificuldades.
O TCE não pensa assim. Segundo dados oriundos da Secretaria da Fazenda, só uma empresa de alimentação foi perdoada em US$30 milhões; será que essa rede é microempresa? Uma empresa de software que movimenta mais de US$10 milhões por ano de faturamento, perdoada em quase US$2 milhões de ICMS, seria microempresa? O mais grave é que, semanas antes de se conceder a anistia risca], o Supremo Tribunal Federal havia começado a julgar as ações movidas contra os inadimplentes mais poderosos, e havia votos favoráveis ao Estado.
Em tempo: nos dois setores anistiados, metade dos contribuintes nada devia para o ICMS. Para estes contribuintes honestos sobrou o quê? Papel de bobo? E o povo de São Paulo, que impressão guardará de seu governo, nesta hora que todos dizem ser de austeridade?
(O Estado de S. Paulo, 05/07/93, P. 3)